sábado, fevereiro 19, 2005

...eternamente roçando na loucura

sabes?, menos mal que chegaste tu porque eu aqui começava a voltar-me louco, tanto tempo a sós, a sós, a sós, toda uma eternidade, a sós, toda uma imensidade na penumbra, a sós, sem saber o quê me arrodeia, sempre névoa, a sós, mas agora tu chegaste, de algum lugar que ignoro tu chegaste e calas, mas a tua presença, os teus indícios de presença, confortam-me, fazem-me vivo, erguem-me deste horizonte que se come a si próprio, eternamente, eu, o infinito, a névoa, sempre a poalha, sabes?, eternamente a poalha, porque eu não nasci, nunca nasci ou não lembro, não, eu estive aqui num momento dado, em qualquer instante apavoradamente incomprovável estive aqui, e estive, estive, desde então estive aqui, onde me encontro agora, onde te encontras tu ou os teus contornos, estive, tempos, eras, ciclos, não sei, nunca o sei, nunca atinarei a cifrar o transcorrer da minha soidade cegueira, mas estive, a habitar, a habitar no incomensurável recinto desta névoa, névoa, névoa, estive, estive, mas agora, sabes?, chegaste tu, chegaste, chegaste tu de além os limites, tu apareceste ou te aproximaste ou tu chegaste, tu, tu, porfim, chegaste, vinheste a acompanhar-me, a acompanhar-me, a acompanhar a minha soidade cegueira tu desciste, irrompeste, emergeste, abrolhaste dos pontinhos grises deste espaço, surgiste de certos imperceptíveis oquinhos da névoa, tu vinheste a visitar comigo esta poalha, porque, sabes?,.................................

O Castelo

O Castelo é já em si infinitamente mais poderoso do que vós; apesar disso, ainda talvez se pudesse ter dúvidas a respeito da vitória final; vós, porém, em vez de vos aproveitardes disto, parece que dirigis todos os vossos esforços no sentido de ainda mais indubitavelmente lhe assegurardes a vitória, e por isso é que vos tomais de medos, assim de repente, e no meio da luta, e sem nenhuma razão de ser, aumentando assim a vossa impotência.

Franz Kafka, O Castelo
Lisboa, Livros do Brasil, s.d., p.384.

terça-feira, fevereiro 15, 2005

Retrato do Artista Enquanto Jovem

[...] «A última e suprema tortura entre todas as torturas daquele local horrendo é a eternidade do Inferno. Eternidade! Que palavra medonha e terrível! Eternidade! Que mente poderá entendê-la? E não vos esqueçais de que é uma eternidade de sofrimento. Mesmo que as penas do Inferno não fossem tão terríveis como são, tornar-se-iam infinitas, porque se destinam a durar para sempre. Mas, embora sendo eternas, são, ao mesmo tempo, como sabeis, intoleravelmente intensas, insuportavelmente extensas. Suportar nem que fosse a picada de um insecto por toda a eternidade já seria um tormento terrível. O que será, então, suportar as inúmeras torturas do Céu, para sempre? Para sempre! Por toda a eternidade! Não é por um ano, nem por um período indeterminado, é para sempre. Tentai imaginar o horrível significado disto. Já vistes frequentemente a areia na praia. Como são finos os seus minúsculos grãos! E quantos desses minúsculos grãos são precisos para formar a pequena mão-cheia de areia em que uma criança agarra para brincar. Agora, imaginem uma montanha dessa areia, com um milhão de milhas de altura, elevando-se da terra até aos mais altos céus, e com um milhão de milhas de largura, estendendo-se até ao espaço mais remoto, e com um milhão de milhas de espessura; e imaginem essa enorme massa de incontáveis partículas de areia multiplicadas pelo número de folhas que há na floresta, de gotas de água do poderoso oceano, de penas das aves, de escamas dos peixes, de pêlos dos animais, de átomos na imensa extensão do ar: e imaginai que, ao fim de cada milhão de anos, um passarinho pousava na montanha e levava no bico um minúsculo grão dessa areia. Quantos milhões e milhões de séculos seriam necessários para que o passarinho levasse consigo um palmo quadrado dessa montanha, quantos eões e eões de séculos até a levar toda? Todavia, no fim dessa imensa extensão de tempo, nem sequer um instante da eternidade teria passado. No final de todos esses biliões e triliões de anos, a eternidade mal teria começado. E se essa montanha se erguesse novamente, depois de ter sido removida e o passarinho voltasse a removê-la novamente, grão a grão, e se ela se elevasse e fosse removida tantas vezes quantas as estrelas que há no céu, os átomos que há no ar, as gotas de água que há no oceano, as folhas que há nas árvores, as penas que há nas aves, as escamas dos peixes, os pêlos dos animais, no final de todas essas inumeráveis elevações e remoções dessa montanha incomensuravelmente grande, não se poderia afirmar que tivesse passado um único instante da eternidade; mesmo nessa altura, no final desse período, depois dessa imensidão de tempo, que, só de pensarmos nela, nos põe a cabeça a andar à roda, a eternidade mal teria começado. [...]


James Joyce, Retrato do Artista Quando Jovem
Lisboa, Publicações Europa-América, 1993, pp. 125-6.

(uma outra vez ainda, em inglês na universidade de adelaide)

segunda-feira, fevereiro 14, 2005

O ESCONDERIJO DO HOMEM TRISTE

Não sei o que me aconteceu para ficar tão triste.

Lembro-me de ter percorrido meio mundo à procura de imagens. Tinham- me dito: é no movimento incessante de quem viaja que encontrarás a imobilidade que desejas.

Mas eu não sabia para onde ir. Deambulei anos a fio, e nunca encontrei as imagens que queria. Gastei as parcas forças que tinha neste trabalho, até que um dia me perdi junto ao mar.

Resolvi construir, ali mesmo, uma casa.

Tencionava não sair mais daquele lugar onde me perdera. Imobilizar- me, viver e envelhecer dentro de quatro paredes nuas erguidas pelas minhas mãos. Morrer frente ao mar, sozinho, como num romance que lera havia anos. Esperar que a casa se esboroasse e me servisse, por fim, de túmulo.

Assim não aconteceu. Algum tempo depois, a casa transformou-se subitamente em prisão. E talvez tenha sido isso que me pôs, assim, triste para sempre. Custava-me a crer que aquilo que eu próprio construíra acabasse de me atraiçoar.

Assustei-me e fugi nessa mesma noite. Ignoro o que se passou com a casa. Não sei se ainda existe... o que sei é que a meio daquela fuga deseperada ocorreu-me o que me levaria, enfim, a encontrar o esconderijo para a minha imobilidade.

É desse lugar iluminado que, hoje, vos falo.

Fui ter com um fotógrafo meu amigo e pedi-lhe para me retratar. Ele acendeu um foco de luz. Sentei-me no centro dele. A máquina disparou sem cessar.

Gesticulei, abri os braços, mexi-me muito -- como se soubesse que nunca mais o voltaria a fazer.

Quando o meu amigo mergulhou o papel fotográfico no revelador, eu também mergulhei. Mas devo ter desmaiado uns segundos, talvez minutos, porque ao retomar consciência senti as pernas e os braços dormentes -- e todo o meu corpo estava mole.

Um véu de luz toldou-me a visão. Ceguei por instantes, mas não foi uma sensação desagradável. Depois, o corpo começou a ondear, a impregnar-se no papel e a coincidir com o retrato que o meu amigo fizera de mim.

Segundos mais tarde uma pinça metálica tirava-me do revelador. Senti, então, a frescura da água -- e toda a superfície da folha de papel, o meu novo corpo, brilhou. Em seguida deixei-me entorpecer na temperatura tépida, voluptuosa, do fixador.

Tinha encontrado o esconderijo.

E aqui estou, diante de quem me visita e olha. Apesar de não ter deixado de ser um homem triste, adquiri a vantagem de estar sentado, e de já não precisar de fugir ou desejar seja o que for.

Mas o pior momento do dia é aquele em que nos separamos. Não consigo dormir. Fico noite fora com a minha solidão -- e quem esteve a ver-me parte com o susto de continuar a existir.

Nenhum de nós é capaz de murmurar: fica comigo e toca-me. E a noite cai, de certeza, mais escura para quem parte.

Eu sou apenas a imagem do que fui. Não sinto nada.

Certa vez, um homem e uma mulher pararam diante de mim. Olharam-me muito tempo.

Aproximaram-se, afastaram-se, voltaram a aproximar-se do vidro que me protege. O nariz da mulher quase me tocou nos joelhos.

De repente, a mulher inclinou a cabeça, sobressaltou-se e disse:

- Zé, perdi o vidro do relógio.

O homem baixou-se e procurou-o. Quando o encontrou, deu-lho. Mas ela argumentou:

- A culpa foi tua. Eu não queria vir aqui.

O homem, muito sério, respondeu-lhe.

- Francamente, Fátima, não te toquei no pulso. Não mexi no tempo. Nunca mexo no tempo...

Outras vezes, quando não está ninguém a olhar para mim, ponho-me a cismar:

A luz é o meu túmulo.

Em tempos, os meus gestos tiveram o rigor da abelha que rouba o pólen à flor. Com esses gestos quis construir um espaço para o silêncio. Uma morada onde fosse possível ignorar o mundo, ou esquecê- lo.

De vez em quando, aceito ainda o mistério das palavras que me cercam e não coincidem, em nada, com a realidade. Eu só quis celebrar a vida. Encontrar o esconderijo onde fosse possível um derradeiro acto de paixão. O esconderijo onde pudesse, de novo, tocar teu rosto e recusar a aridez da calúnia.

Mas a luz é o meu túmulo.

A pouco e pouco incendiaram-se os negros profundos, o círculo luminoso aprisionou-me, e as mãos gesticularam sem sentido. O interior das paisagens guardou a tua ausência. E numa última visão a madrugada irrompeu do mar adormecido.

As mãos abriram-se novamente, quando o dia começou a devorar a nudez do corpo.

Comovido, perdi a voz.

Não podia chamar-te, lembro-me, por isso desatei a escrever o teu nome nas paredes da cidade. Tempo perdido. Já não podias ouvir-me nem ler-me. Foi quando desejei, com ardor, este esconderijo.

Aqui, pelo menos, respiro ar condicionado, e um foco de luz simula a eternidade dos dias.

Não há emoções, nem palavras ditas em voz alta. Não acontece nada, nem se ouve respiração alguma.

Quem me visita diz coisas fantásticas a meu respeito. Nunca confirmo nem desminto. Limito-me a ouvir e calo-me. Porque há coisas que devem correr com o tempo e, mais tarde ou mais cedo, nele se apagam.

É claro que também há coisas guardadas na minha memória de papel. Mas essas, já não tenho a certeza de que alguém as tenha dito ou eu as tenha, de facto, ouvido.

Por vezes ponho-me a sorrir, mas ninguém consegue ver que sorrio, porque o retrato que me esconde -- como eu -- está morto e desfocado.

E a luz é o nosso túmulo.


Al Berto...

quinta-feira, fevereiro 10, 2005

por que diabo vieram parar aqui?!

(ou mais um talhe no tronco-de-teia)

os incautos que já nos visitaram procuram coisas como "literatura cinzenta" (resultado nº 8 no google.es), "editores portugueses" (resultado nº 60-e-tal no google.fr), "bibliotecas e direitos de autor" (resultado nº 31 no google.pt)...

isso e referências no technorati ao seu próprio tronco... (quase todos os que foram citados)

não há registo de regressos.

ninguém optou por apagar este lixo-informático. a password está ali.

quem é quem?

quarta-feira, fevereiro 09, 2005

Paráfrase do célebre poema de

RIFÃO QUOTIDIANO

Uma nêspera
estava na cama
deitada
muito calada
a ver
o que acontecia

chegou a velha
e disse
olha uma nêspera
e zás comeu-a

é o que acontece
às nêsperas
que ficam deitadas
caladas
a esperar
o que acontece

Mário-Henrique Leiria

segunda-feira, fevereiro 07, 2005

&etc

...disseste-me que esperasse
dirigente
camarada
e eu esperei
disseste-me que ainda não era a altura
nem a hora
ainda é cedo
a luta ainda é cedo
é cedo
porquê
se a minha vida passa
disseste-me que esperasse
Prometeu
e eu esperei
não fui com os meus irmãos ocupar as terras
do senhor marquês
disseste-me que esperasse
e que depois me darias
os tractores e as máquinas agrícolas as alfaias
que andavas a negociar
na bulgária ou na roménia
democracias
democracias amigas dizias tu
e eu esperei
. . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Jorge Silva Melo
Prometeu Rascunhos, Lisboa, &etc, 1997

bookcat

Bem, já que estás numa de xml, toma lá um programa de catalogação de livros relativamente decente que faz uso dessa coisa... (Shareware em desenvolvimento, "facilmente" costumizável.)

De onde é que saiu o interesse pelo xml, afinal? E é crível que algum formato se mantenha ou não seja açambarcado/adulterado?

[IFLA? FRBR? links?!]

O futuro é uma imensa babel de informação desconexa...

os direitos de autor / as bibliotecas

Depois...

Não há como dizer que "infelizmente" há uma coisa chamada direitos de autor. Talvez infelizmente o prazo de validade destes seja demasiado alto (vai em quanto, 75 anos? depois da morte do autor...), o que justifica apenas a criação de listas dos mortos mais lucrativos, e disputas familiares por cifrões e autorizações e o diabo.

Lembro-me de há tempos ver não-sei-onde que na Austrália, por exemplo, esse limite continua a ser de "apenas" 50 anos, pelo que a obra completa do Orwell (1903-1950), por exemplo, está mais ou menos toda disponível em sites como este -- e o autor desta importante referência perguntava-se sobre se ela poderia constituir um crime de lesa-autor... (Pormenor-não-pequeno: é uma universidade que nos "oferece" este texto.)


Como é evidente, não é o direito do autor (moral, económico, whatever) que se deve pôr em causa, mas sim o seu abuso -- patente não só nas sucessivas prorrogações do prazo limite (que em nada contribuem para o incentivo da produção, a não ser que se considere o tão propalado "agradeço todo o apoio da minha família"), mas também em semi-disparates como o direito de comodato (segundo o qual as bibliotecas deverão pagar aos autores/editores pelos livros que acomodam nas suas estantes empoeiradas).

Circulou por aí um daqueles abaixo-teclados que invadem as caixas de correio electrónico, e cujo destino é sempre incerto, que subnomeei sem pestanejar, para agora encontrar uma discussão ligeiramente mais séria sobre o assunto (e inconclusiva?).

RE: Resposta... -- a apel e o monstro

Antes de mais, a apel não "cumpriu apenas o papel de informar" coisa nenhuma. Aquilo que poderia interessar aos editores portugueses (aos livreiros menos...) não é a "futura existência do google print", prevista para um obscuro dois-mil-e-dez, mas sim a sua existência de facto, ou seja, a possibilidade de os editores enviarem os seus livros gratuitamente para pesquisa de conteúdo e aquisição online (mais uns trocos em publicidade), programa este lançado uns meses antes da loucura total. Depois, biblioteca britânica?! A de Oxford é-o, mas esta não assinou coisa nenhuma com o google. Quanto ao serviço informativo da apel estamos conversados... (Só para ser chato que é o que sabemos fazer melhor e não dá trabalho nenhum.)


Já o monstro...

O texto anterior acabava com uma pergunta-citação do google watch, site paranóico que esse sim cumpre o seu papel. (Outros já o fizeram sem querer, comparando os rastejadores do google aos aranhiços da matriz.)

Toda a gente (a começar por mim) está permanentemente deslumbrada com o google, as coisas que se encontram, do que eles se lembram, a sua absoluta indispensabilidade, para pensar nos mais que muitos buracos em que nos estamos a meter. E não apenas no que toca à privacidade (sim, eles sabem o que procuramos, o que escolhemos, e até passam uma vista de olhos pelas nossas cartas...) -- já que afinal são "só" um computador, e não a concierge ao fundo da escada --, mas também nos perigos de todo e qualquer monopólio.

Ou seja, se e quando o google morrer, onde é que está a fada-madrinha que sempre nos salvou? Se pelo contrário crescer, o que é que fazemos quando toda a internet for apenas a rede interna de uma empresa? Ou quando tivermos de pagar para procurar o que quer que seja? E que tal é saber que o Patriot Act permite a criação de uma base de dados de leitores de Marx, do Anarchist Cookbook, do Corão, de São Cipriano? E o cruzamento disso com comentários desagradáveis no blogger (propriedade do google)?

Mais, que dizer do fim da profissão do Borges-bibliotecário (partindo do princípio que ele não foi só leitor/escritor), e já agora do fim dos jornais, porque era disso que tratava o documentário-flash referido antes? E por arrasto das livrarias, quando o google se fundir com a amazon e adquirirem a xerox-hewlett-packard-compaq, e logo das editoras, já que quem quiser mesmo destruir arvorezinhas poderá sempre pedir a impressão do livro pronto-a-pegar...

Ou, na luta dos gigantes que se avizinha, quem será o primeiro espezinhado?!

quarta-feira, fevereiro 02, 2005

o silêncio

«I have nothing to say, and I'm saying it, and that is poetry.»

John Cage (1912-1992)

terça-feira, fevereiro 01, 2005

o zé manel e a história...

será possível acreditar que o mais recente governo democrático não "peça" aos seus velhos amigos ianques para ficarem a proteger abnegadamente os poços de petróleo do bravo povo iraquiano daqui a 18 meses?

(já sessenta anos é duvidoso que sejam precisos para acabar com ele)