sábado, junho 25, 2005

outro jesuíta enraivecido...

– É inútil que tu te defendas. Agora o mundo inteiro tem uma só meta, que é o inferno.

Continuou em alta voz, como se falasse do púlpito de uma igreja:

– Sim, o inferno, de que pouco sabeis, tu e todos os que contigo estão para lá se dirigindo com passo lesto e ânimo louco! Vós acreditáveis que no inferno encontraríeis espadas, punhais, rodas, navalhas, correntes de enxofre, bebidas de chumbo líquido, águas geladas, caldeiras e grades, serras e maças, sovelas de tirar olhos, tenazes de arrancar dentes, pentes de esquartejar os flancos, correntes de moer os ossos, bichos que roem, acúleos que aplainam, laços que estrangulam, cavaletes, cruzes, ganchos e cutelos? Não! Estes são tormentos impiedosos, mas tais que mente humana pode ainda concebê-los, pois havemos até concebido os toros de bronze, os assentos de ferro ou o perfurar as unhas com canas afiadas... Vós esperáveis que o inferno fosse uma barbacã feita de Peixes Pedra. Não, outras são as penas do inferno, porque não nascem da nossa mente finita, mas sim da infinita de um Deus irado e vingativo, obrigado a fazer gala da sua fúria e a mostrar que, como teve a grande misericórdia em absolver, não tem menor justiça no castigar! Deverão ser essas penas tais que nelas possamos entrever a desigualdade que corre entre a nossa impotência e a sua omnipotência!

– Neste mundo – disse ainda aquele mensageiro da penitência –, vós costumais ver que para cada mal se encontrou qualquer remédio, e não há ferida sem o seu bálsamo, nem tóxico sem o seu antídoto. Mas não penseis que o mesmo aconteça no inferno. São lá, é verdade, extremamente molestas as queimaduras, mas não há linimento que as atenue; ardente a sede, mas não há água que a refrigere; canina a fome, mas não há comida que a restaure; insuportável a vergonha, mas não há pano que a cubra. Ao menos que houvesse lá uma morte, a qual pusesse um termo a tantas dores, uma morte, uma morte... Mas isto é o pior, que aí nem sequer podeis jamais esperar uma graça de resto tão lutuosa qual é a de ser exterminado! Procurais a morte sob todas as suas formas, procurais a morte, e nunca tereis a fortuna de encontrá-la. Morte, Morte, onde estás (ireis continuamente gritando), qual será o demónio tão piedoso que no-la dê? E compreendereis então que lá jamais se acaba de penar!

O velho nesta altura fez uma pausa, ergueu os braços com as mãos ao céu, sibilando em voz baixa, quase a confiar um segredo tremendo que não devia sair daquela nave.

– Jamais acabar de penar? Quer dizer que penaremos até que um pequeno pintassilgo, vindo beber uma gota por ano, pudesse chegar a secar todos os mares? Mais. In saecula. Penaremos até que um ácaro das plantas, vindo dar uma bicada por ano, pudesse chegar a devorar todos os bosques? Mais. In saecula. Penaremos então até que uma formiga, movendo um só passo por ano, possa haver girado toda a terra? Mais. In saecula. E se todo este universo fosse um só deserto de areia, e cada século lhe retirasse um só grão, acabaríamos porventura de penar quando o universo fosse todo limpo? Nem isso. In saecula. Imaginamos nós que um condenado ao cabo de milhões de séculos deite duas lágrimas sós, deixará ele então de penar quando o seu pranto for capaz de formar um maior dilúvio do que aquele no qual foi antigamente perdido todo o género humano? Ora, basta, que não somos crianças! Se quiserdes que vo-lo diga: in saecula, in saecula deverão os condenados penar, in saecula, que é o mesmo que dizer em séculos sem número, sem termo, sem medida.

Agora o rosto do padre Gaspar parecia o do carmelita da Griva. Erguia os olhos ao céu como para nele achar uma só esperança de misericórdia.

– Mas Deus – disse com voz de penitente digno de compaixão –, mas Deus não pena à vista das nossas penas? Não sucederá que Ele sinta um movimento de solicitude, não sucederá que por fim ele se mostre, para que sejamos ao menos consolados pelo seu pranto? Ai de mim, ingénuos que sois! Deus infelizmente mostrar-se-á, mais ainda nem podeis imaginar como! Quando erguermos os olhos veremos que Ele (devo dizê-lo?) veremos que Ele, transformado para nós num Nero, não por injustiça mas por severidade, não só não quererá nem consolar-nos, nem socorrer-nos, nem apiedar-se, mas com satisfação inconcebível rirá! Pensai portanto em que loucuras deveremos nós irromper! Nós ardemos, diremos, e Deus ri? Nós ardemos, e Deus ri? Oh Deus crudelíssimo! Porque não nos fulminas com os teus raios, em vez de nos insultares com os teus risos? Redobra mesmo, ó impiedoso, as nossas chamas, mas não queiras com elas regozijar-te! Ah, riso a nós mais amargo que o nosso pranto! Ah, alegria a nós mais dolorosa que as nossas dores! Porque não tem o inferno nosso voragens por onde se possa escapar à figura de um Deus que ri? Demasiado nos enganou quem nos disse que a nossa punição seria o ver a face de um Deus indignado. De um Deus risonho, deveria pelo contrário dizer-se, de um Deus risonho... Para não ver e ouvir esse riso preferiríamos que nos caíssem as montanhas na cabeça, ou que a terra nos faltasse debaixo dos pés. Mas não, porque infelizmente veremos o que nos magoa, e seremos cegos e surdos a tudo, salvo àquilo a que queríamos ser surdos e cegos!


Umberto Eco, A Ilha do Dia Antes
Tradução de José Colaço Barreiros
Lisboa, Difel, 2ª ed., 1995.
pp.413-15