um bocadinho de história...
Eu vi nascer o 25 de Novembro muito antes. Numa manhã fria de 68, em frente à Reitoria, ao alto da Alameda da Universidade. Era um plenário de estudantes em greve. E eis que chega à mesa, constituída por dirigentes estudantis próximos de um partido então clandestino e na origem de outro que daí a nada se formaria na Alemanha, uma moção. Eu vi. O dirigente pegou no papelinho, deu um rapidíssimo relance de olhos, meteu-o ao bolso. A moção -- o que proporia ela? -- não foi apresentada à multidão que constituía aquela Assembleia improvisada. Muitos anos depois, descubro, numa publicação estrangeira, uma fotografia em que ainda se vê o braço arqueado desse dirigente e a mão a aproximar-se do bolso do casaco com um pequeno papel: a tal moção surripiada (ao que suponho) em nome de altos interesses estratégicos.
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Mas aquela moção metida ao bolso -- e não sei o que continha a dita, nem de onde provinha, sei só que a subscrevia um grupo de estudantes e que foi enviada à mesa -- marca, para mim, como gesto simbólico, o início do fim desta luminosa inquietação, febril sentido de liberdade, busca ávida das mais diferentes, divergentes e convergentes soluções. O início do fim deste luxemburguismo ingénuo desses anos (...). Naqueles segundos em que a mão levou o papel ao bolso, a luta deixou de ser impulsionada pelos movimentos estudantis, a mesa abusou de um poder que não lhe deram os que cá em baixo estavam, os partidos (em formação, crise ou em alteração) recomeçavam a ocupar o lugar de "ordeiros da oposição". A Assembleia passou a ser A Mesa. A desordem provavelmente inconsequente daqueles anos de crise vitalista da oposição que se sucederam a Delgado dava lugar à ordem.
E a "ordem" era a que era ditada por Ialta, o Tratado de Tordesilhas do século XX. O mundo dividia-se de novo em movimentos na órbita dos EU (vulgo CIA) e movimentos na órbita da URSS (vulgo KGB). E o que é divertido pensar hoje é que ambos os campos definidos por esse tratado estavam em jogo naquele gesto simbólico e naquela mesma pessoa que meteu a moção no seu histórico bolso. Ou não fosse quem a sonegou um (nessa altura) dirigente do PC que pouco tempo depois iria fundar o PS...
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É por isso que eu vi nascer o 25 de Novembro muito antes de ter visto rebentar, incrédulo, o 25 de Abril na madrugada a seguir a uma ida à ópera no Coliseu (A Traviata de Verdi com Joan Sutherland e Alfredo Kraus).
Com o 25 de Abril foram de novo ultrapassadas as lógicas partidárias. O espantoso e surpreendente movimento social que rebentou entre esse dia e os finais de Maio de 1974 fez com que nesses dias ruísse tudo o que era doutrina. E como era divertido ver as formações partidárias, recém formadas ou recém-estruturadas, correr atrás dos acontecimentos. Pouco faltou para que o CDS não se considerasse marxista-leninista.
Não havia doutrina que conseguisse deter o fluxo interminável de desejo que durante esses dias fez cair as barricadas do capitalismo (só as barricadas, ou melhor: só algumas barricadas).
Mas, é claro, aqueles mesmos protagonistas que tinham sido os dirigentes estudantis na tal mesa do tal plenário de estudantes em greve numa manhã de 1968, haviam de querer meter tudo nos eixos. Fazer renascer a doutrina da balbúrdia do desejo. A Mesa sobrepor-se à Assembleia.
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A lógica partidária (a cegueira política) venceu. O leninismo fez esquecer o incipiente luxemburguismo de há uns anos. O 25 de Novembro já estava feito há muito. A luta política deixou as ruas, saiu do desejo das pessoas que dela abdicaram, delegando. Delegando até nos "melhores" (Sampaio é melhor do que Cavaco, eu até fiquei contente) -- mas resumindo a sua política à delegação.
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Jorge Silva Melo, «Eu vi nascer o 25 de Novembro muito antes»
Revista Abril em Maio, número zero, Maio de 1999
(pp. 3-9; sublinhados e cortes evidentemente maus)
INCRÉUS (2):
Ontem ouvi a Lili Caneças a dizer que em 1962 era trotskista. Estava em Letras nessa altura...
sniff, sniff...
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